A Comissão de Licitação habilitou licitante que foi sancionado com pena de suspensão do direito de licitar. Agiu corretamente?
Imagine que em determinado certame licitatório a Comissão de Licitação tenha habilitado licitante que, comprovadamente, foi sancionado com pena de suspensão do direito de licitar. Sabendo que a sanção foi aplicada por ente federativo diverso daquele em que tramita o procedimento licitatório, emerge a seguinte dúvida prática: a sanção impede o licitante de participar de processo licitatório promovido por qualquer ente federativo ou limita-se ao âmbito do ente que lhe aplicou a pena?
A resposta não é expressa na Lei 8.666/93, sendo por isso objeto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial, havendo inclusive divergência entre o que pensam os Tribunais de Contas e o Superior Tribunal de Justiça (STJ).
É bem verdade que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos pacificará a controvérsia, mas até que se transcorra o prazo de dois anos e seja a Lei 8.666/93 definitivamente revogada, será preciso muita atenção aos agentes e operadores do direito que lidam diariamente com licitações e contratos administrativos.
Vejamos, então, o estado da arte na legislação e na jurisprudência.
Tanto a antiga (Lei 8.666/93, art. 87, incisos I a IV)) quanto à nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021, art. 156, incisos I a IV) preveem quatro espécies de sanções aplicáveis aos particulares que contratam com a Administração, a saber:
(i) advertência;
(ii) multa;
(iii) suspensão temporária da participação em licitação e impedimento para contratar com a Administração;
(iv) declaração de inidoneidade para licitar ou contratar.
Na Lei 8.666/93, a suspensão/impedimento de licitar ou contratar não podia superar dois anos (art. 87, inciso III), enquanto a Lei 14.133/2021 prevê prazo máximo de três anos.
Já em relação à inidoneidade, a Lei 8.666/93 dispõe que os seus efeitos persistirão enquanto perdurar os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior (art. 87, inciso IV).
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos prevê as mesmas sanções, mas estabelece prazos diferentes e normatiza os efeitos da suspensão e da idoneidade, diferenciando-as.
Quanto à suspensão (intitulada pelo novo diploma legal de “impedimento de licitar e contratar), estabelece que a mencionada sanção impedirá o responsável de licitar ou contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta do ente federativo que a tiver aplicado, pelo prazo máximo de 3 (três) anos.
Enquanto para a inidoneidade dispõe que impedirá o responsável de licitar ou contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta de todos os entes federativos, pelo prazo mínimo de 3 (três) anos e máximo de 6 (seis) anos.
Nesse particular, a nova legislação incorporou o entendimento do Tribunal de Contas da União, que era no sentido de que a suspensão do direito de licitar e contratar, prevista no art. 87, inciso III, da Lei de Licitações, é limitada ao próprio órgão que aplicou a penalidade, ao contrário do que ocorre com a declaração de inidoneidade, que produz efeitos em todo o território nacional (Acórdãos 9353/2020-Primeira Câmara; 2962/20215-Plenário, 2530/2015-Plenário).
Idêntica orientação prepondera no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, conforme orientação plasmada na Súmula 51 de sua jurisprudência: “A declaração de inidoneidade para licitar ou contratar (artigo 87, IV da Lei nº 8.666/93) tem seus efeitos jurídicos estendidos a todos os órgãos da Administração Pública, ao passo que, nos casos de impedimento e suspensão de licitar e contratar (artigo 87, III da Lei nº 8.666/93 e artigo 7º da Lei nº 10.520/02), a medida repressiva se restringe à esfera de governo do órgão sancionador”.
É importante ressaltar, entretanto, que tal entendimento não encontra respaldo nos órgãos do Poder Judiciário, notadamente no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que tem posição consolidada em sentido contrário, conforme se extrai dos seguintes acórdãos (dentre outros em que STJ reafirmou esta orientação, a exemplo do REsp 520.553/RJ, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 10.02.2011; AgInt no REsp 1.552.078/DF, 1ª T., rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 30.09.2019, DJe 08.10.2019):
“A limitação dos efeitos da ‘suspensão de participação de licitação’ não pode ficar restrita a um órgão do poder público, pois os efeitos do desvio de conduta que inabilita o sujeito para contratar com a Administração se estendem a qualquer órgão da Administração Pública”. (REsp 151.567/RJ, DJ 14/04/2003)
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE PARTICIPAR DE LICITAÇÃO E IMPEDIMENTO DE CONTRATAR. ALCANCE DA PENALIDADE. TODA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. […] 2. De acordo com a jurisprudência do STJ, a penalidade prevista no art. 87, III, da Lei n. 8.666/1993 não produz efeitos apenas em relação ao ente federativo sancionador, mas alcança toda a Administração Pública (…) (STJ, AgInt no REsp 1.382.362/PR, 1ª T., rel. Min. Gurgel de Faria, j. 07.03.2017, DJe 31.03.2017)
A ressalva, aliás, tem importância prática ao menos enquanto perdurar a vigência da Lei 8.666/93. Vale dizer, no período de dois anos, contados da publicação da Nova Lei, as licitações poderão ser regidas pelas novas disposições ou pela Lei 8.666/93, por força do disposto no art. 191 da Lei 14.133/2021.
Daí a importância e atualidade do tema.
Outra consequência prática que deve ser investigada reside nos efeitos da sanção sobre os contratos firmados pelo licitante apenado e/ou em fase de execução.
Não se revela possível retroagir os efeitos da penalidade aos contratos aperfeiçoados antes de sua imposição ou em fase de execução, em respeito ao ato jurídico perfeito, de modo que a sanção produz efeitos para o futuro, impedindo a participação do apenado em outros certames licitatórios, mas sem acarretar a rescisão automática do vínculo mantido com a Administração.
E tal orientação aplica-se, igualmente, à declaração de inidoneidade, tal como reconhecido pela jurisprudência do STJ:
“ADMINISTRATIVO. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EFEITOS EX NUNC DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE: SIGNIFICADO. PRECEDENTE DA 1a. SEÇÃO (MS 13.964/DF, DJe DE 25.5.2009).
1. Segundo precedentes da 1ª Seção, a declaração de inidoneidade só produz efeito para o futuro (efeito ex nunc), sem interferir nos contratos já existentes e em andamento (MS 13.101/DF, Min. Eliana Calmon, DJe de 9.12.2008). Afirma-se, com isso, que o efeito da sanção inibe a empresa de licitar ou contratar com a Administração Pública (Lei 8666/93, art. 87), sem, no entanto, acarretar, automaticamente, a rescisão de contratos administrativos já aperfeiçoados juridicamente e em curso de execução, notadamente os celebrados perante outros órgãos administrativos não vinculados à autoridadeimpetrada ou integrantes de outros entes da Federação (Estados, Distrito Federal e Municípios). Todavia, a ausência do efeito rescisório automático não compromete nem restringe a faculdade que têm as entidades da Administração Pública de, no âmbito da sua esfera autônoma de atuação, promover medidas administrativas específicas para rescindir os contratos, nos casos autorizados e observadas as formalidades estabelecidas nos artigos 77 a 80 da Lei 8.666/93.
2. No caso, está reconhecido que o ato atacado não operou automaticamente a rescisão dos contratos em curso, firmados pelas impetrantes.
3. Mandado de segurança denegado, prejudicado o agravo regimental” (MS 14.002/DF, rel. Min. Teori Albino Xavascki, DJe 06.11.2009).
Trata-se, também, de uma decorrência dos princípios constitucionais aplicáveis ao processo administrativo sancionador, cuja aplicação restou positiva no ordenamento jurídico nacional com a promulgação e publicação da Lei 14.230/2021, que promoveu inúmeras alterações na Lei de Improbidade Administrativa.
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