O art. 31 da Lei 8.666/93 dispõe sobre a documentação relativa à qualificação econômico-financeira da empresa participante do certame licitatório, dentre os quais elenca no inciso II a “certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física”,

Trata-se, entretanto, da redação originária da mencionada Lei, que remonta ao ano de 1993, sendo certo que a legislação sobre falências e recuperação judicial foi totalmente reformulada no ano de 2005 (Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, com as alterações da Lei 14.112, de 2020).

Dentre outras inovações, a Lei 11.101/2005 substituiu a figura da concordada pela recuperação judicial e extrajudicial, bem como adotou expressamente o princípio da função social e, consequentemente, a preservação da empresa e o estímulo à atividade econômica como diretrizes para a superação de crise econômico-financeira do devedor.

É o que preconiza expressamente o art. 47 da Lei 11.101/2005: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

Emerge deste contexto a seguinte controvérsia: houve a revogação do inciso II do art. 31 da Lei 8.666/93? Ou podem os entes continuar a exigir a certidão negativa de recuperação judicial?

Toda e qualquer interpretação deve partir da expressa ressalva do art. 37, inciso XXI da Constituição Federal, segundo a qual as exigências de qualificação técnica e econômica devem se limitar ao indispensável à garantia do cumprimento das obrigações. Afinal, consoante se extraí da jurisprudência do STJ, “é vedado à Administração levar a termo interpretação extensiva ou restritiva de direitos, quando a lei assim não o dispuser de forma expressa” (AgRg no RMS 44099/ES, 1ª T., rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 03.03.2016, DJe 10.03.2016).

Logo, parece-nos infundada a exigência de certidão negativa de recuperação judicial, não podendo tal circunstância por si só justificar a inabilitação do licitante nesta condição.

O Tribunal de Contas da União, a propósito, tem orientação exatamente neste sentido: “o rol constante dos arts. 27 a 31 da Lei 8.666/93 não inclui, entre a documentação exigida, certidão negativa de recuperação judicial expedida pelo distribuidor e suas sedes, nos termos da Lei 11.101/2005” (Acórdão 1.810/2013-Plenário).

Todavia, para resguardar o interesse público e ao mesmo tempo possibilitar a efetivação dos propósitos da Lei 11.101/2005 pode-se exigir da empresa licitante em recuperação judicial a apresentação, na fase de habilitação, de documento que demonstre sua viabilidade econômica.

Imperioso assinalar, a propósito, que o simples requerimento e o correspondente deferimento do pedido de recuperação judicial não servem como documento comprobatório da viabilidade econômica.

Isso porque a recuperação judicial processa-se em três fases: postulatória, deliberativa e executória.

Na primeira, tem-se a materialização da pretensão ao benefício mediante a confissão da empresa de sua situação de dificuldade econômica, encerrando-se com o despacho que a defere. Em seguida, o plano de recuperação é submetido ao crivo da Assembleia Geral de Credores e, se aprovado, tem início a última e derradeira etapa, referente ao cumprimento de suas disposições.

Nesse sentido é a posição do STJ, firmada ao julgar o AREsp 309.867/ES, do qual se destacam as seguintes passagens:

ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PARTICIPAÇÃO. POSSIBILIDADE. CERTIDÃO DE FALÊNCIA OU CONCORDATA. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. DESCABIMENTO. APTIDÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA. COMPROVAÇÃO. OUTROS MEIOS. NECESSIDADE.

[…]

2. Conquanto a Lei n. 11.101/2005 tenha substituído a figura da concordata pelos institutos da recuperação judicial e extrajudicial, o art. 31 da Lei n. 8.666/1993 não teve o texto alterado para se amoldar à nova sistemática, tampouco foi derrogado.

[…]

4. Inexistindo autorização legislativa, incabível a automática inabilitação de empresas submetidas à Lei n. 11.101/2005 unicamente pela não apresentação de certidão negativa de recuperação judicial, principalmente considerando o disposto no art. 52, I, daquele normativo, que prevê a possibilidade de contratação com o poder público, o que, em regra geral, pressupõe a participação prévia em licitação.

5. O escopo primordial da Lei n. 11.101/2005, nos termos do art. 47, é viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

6. A interpretação sistemática dos dispositivos das Leis n. 8.666/1993 e n. 11.101/2005 leva à conclusão de que é possível uma ponderação equilibrada dos princípios nelas contidos, pois a preservação da empresa, de sua função social e do estímulo à atividade econômica atendem também, em última análise, ao interesse da coletividade, uma vez que se busca a manutenção da fonte produtora, dos postos de trabalho e dos interesses dos credores.

7. A exigência de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial deve ser relativizada a fim de possibilitar à empresa em recuperação judicial participar do certame, desde que demonstre, na fase de habilitação, a sua viabilidade econômica.

8. Agravo conhecido para dar provimento ao recurso especial” (AREsp 309.867/ES, 1ª T., rel. Min. Gurgel de Faria, j. 26.06.2018, DJe 08.08.2018). Em face deste cenário, a apresentação de certidão positiva de recuperação judicial não enseja a imediata inabilitação da empresa, incumbindo à comissão de licitação ou ao pregoeiro examinar a capacidade econômico-financeira da licitante, podendo inclusive realizar diligências, se necessário.